19/11/2025

STJ permite que bem de família fique indisponível

Por: Laura Ignacio
Fonte: Valor Econômico
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que é possível decretar a
indisponibilidade de um bem de família, mesmo considerando que é
impenhorável. A decisão reforça a legalidade do uso de medidas cautelares
chamadas de atípicas - como bloqueio de CNH, passaporte ou chave PIX - para
pressionar devedores a quitar o que devem. Não cabe mais recurso.
A impenhorabilidade do bem de família foi instituída pela Lei nº 8.009, de
1990. O objetivo da legislação é proteger o direito constitucional
fundamental à moradia e à dignidade humana. Mas é comum que o imóvel
seja vendido para que o dono se mude para outro lugar mais em conta e fique
com a diferença.
Com a decisão, um imóvel poderá ser incluído no sistema da Central Nacional
de Indisponibilidade de Bens (CNIB). Vai aparecer na matrícula, registrada em
cartório, que ele está indisponível. Na prática, portanto, o julgamento da 3ª
Turma, unânime, impede a comercialização do bem de família.
A decisão é importante, segundo Elias Marques de Medeiros Neto, sócio do
escritório TozziniFreire e especialista em Processo Civil, porque o uso do CNIB
nas demandas cíveis já foi impedido pelo STJ, como sendo uma medida atípica
(Resp 1963178).
O Código de Processo Civil (CPC) estabelece que o juiz pode determinar “todas
as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias
para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que
tenham por objeto prestação pecuniária” (artigo 139 inciso IV). Segundo
Medeiros Neto, isso passou a permitir que se chegue mais rápido no patrimônio
do devedor, por meio de meios executivos atípicos, que incentivam o
pagamento.
Esse dispositivo do CPC já foi questionado no Supremo Tribunal Federal
(STF). Embora a Corte tenha declarado que ele é constitucional (ADI 5941),
há uma grande divergência na doutrina sobre quais seriam os limites para a sua
aplicação.
“A própria 3ª Turma do STJ já decidiu que a medida atípica deve ser usada de
forma subsidiária, ou seja, após esgotados os outros meios de cobrança”, afirma
Medeiros Neto. “Também entendeu que devem ser observados os princípios
do contraditório e da proporcionalidade.”
Segundo o especialista, será o enfrentamento do Tema 1137 pelo STJ, em
recurso repetitivo, que esclarecerá quais são os critérios para a sua aplicação. A
decisão orientará os magistrados da primeira e segunda instâncias do Judiciário.
Para Medeiros Neto, a decisão que permite a inclusão do bem de família na
CNIB também é relevante por diferenciar a impenhorabilidade da
indisponibilidade. A finalidade da primeira é garantir o direito à moradia. “Se
um bem é decretado como indisponível, isso significa que ele não poderá ser
vendido sem que o devedor se regularize do ponto de vista financeiro, mas ele
não perde o patrimônio”, afirma.
No caso concreto, foi proposta uma ação de execução de título extrajudicial
pela Cooperativa de Crédito, Poupança e Investimento Vale do Piquiri e ABCD
- Sicredi Vale do Piqueri contra dois devedores. A primeira instância deferiu o
pedido de indisponibilidade do bem de família dos devedores pela CNIB. Eles
recorreram, mas o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) negou o pleito.
Medida evita o esvaziamento patrimonial do devedor”
— Rafael Penido
Inconformados, eles apresentaram recurso especial ao STJ para pedir o
levantamento da averbação de indisponibilidade. Apontaram violação aos
artigos 1º e 3º da Lei Federal nº 8.009, de 1990, pois “em razão da
impenhorabilidade da pequena propriedade familiar, o bloqueio e a
indisponibilidade desse mesmo imóvel se tornam inviáveis”.
Segundo o voto da ministra relatora Nancy Andrighi, “a ordem de
indisponibilidade por meio da CNIB poderá recair sobre bens de família, pois
não impede a lavratura de escritura representativa de negócio jurídico e não
afronta a proteção da impenhorabilidade, mas dá ciência da dívida a terceiros,
coagindo os devedores ao pagamento”.
A ministra lembrou ainda que, de acordo com o artigo 185-A do Código
Tributário Nacional (CTN), "na hipótese de o devedor tributário,
devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e
não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a
indisponibilidade de seus bens e direitos".
Para o advogado Lucas Menezes, sócio do contencioso cível do escritório
Pessoa e Pessoa Advogados, a decisão da 3ª Turma é muito importante do
ponto de vista do credor, “que passa a ter mais um instrumento para obter o
crédito ao qual tem direito”.
Contudo, o advogado alerta que a recente decisão deve gerar alguma
instabilidade na jurisprudência da Corte. “As turmas de Direito Privado e
Público do STJ têm entendimentos opostos sobre a inclusão de bem de família
no CNIB”, afirma. “No caso de dívida tributária, não seria possível usar o CNIB
como instrumento coercitivo, mas no caso de dívida na esfera privada sim”,
acrescenta. Para ele, isso pode fazer com que o STJ seja provocado a levar o
tema para Corte Especial se manifestar a respeito.
Se um bem é declarado indisponível, sua venda é dificultada para evitar o
esvaziamento patrimonial do devedor, a chamada fraude à execução, destaca
Rafael Penido, advogado do escritório Barbosa Castro & Mendonça Advogados
Associados. “O comprador saberá que, embora o bem não possa ser levado à
leilão, por ser impenhorável, o proprietário é executado [devedor]”, diz.
“Já vi caso de morador de imóvel de alto padrão que teve que vender o bem de
família para quitar o condomínio e o IPTU. A indisponibilidade do imóvel
dificultaria essa transação”, afirma Penido. “Por isso, a decisão do STJ é um
importe precedente.”
Já o advogado Ricardo Trotta, sócio-fundador de uma banca que leva o nome
dele, lembra que há uma alternativa à venda. Segundo o especialista, a
jurisprudência permite também que o bem de família seja alugado. Basta que
com o fruto desse aluguel o dono pague o aluguel de um outro imóvel para
morar.
“Recentemente, uma pessoa que mudou de emprego, para um local muito
distante do endereço do bem de família, fez isso para facilitar o trajeto ao
trabalho”, diz. “Há jurisprudência favorável, por exemplo, no Tribunal de
Justiça de São Paulo e no do Paraná [TJSP e TJPR]”, conclui (respectivamente
agravos de instrumento nº 2129390-52.2024.8.26.0000 e 0073644-
86.2022.8.16.0000).